
Via Tolosana
(800 km - 33 dias)
Continuação...
Segundo o Dicionário Priberam, a origem da palavra “continuar” vem do “latim contínuo, -are, fazer seguir imediatamente, juntar, suceder, prolongar, persistir”. E foi o que fizemos de abril a junho de 2025. Continuamos, o que começamos a fazer em 2013, ou seja, viajar a pé.
Para começar, foi um ano que deixamos tudo para última hora. Ficamos indecisos se viajaríamos ou não. Se sim, qual caminho faríamos? Enfim, tínhamos muitas dúvidas, primeiro por causa dos altos valores de passagens e também por algumas instabilidades familiares. Bem em cima da hora, tomamos coragem e compramos as passagens. Resolvemos fazer um dos roteiros mais ou menos mapeado, dispensando outras ideias que também tínhamos em mente. Além do caminho, contávamos com uma outra demanda, um casamento no interior da Inglaterra.
Primeiro, nos debruçamos no roteiro da Via Tolosana, no sul da França. Seriam 800 quilômetros para viabilizar em até 35 dias. Depois, precisaríamos achar uma forma de despachar uma pequena mala, de Lisboa até uma cidadezinha inglesa chamada Chipping Campden na região das Cotswolds, com roupas apropriadas para o casamento da Olivia e Alex, filha e futuro genro de um casal de amigos queridos de Bowling Green, o Frank e a Lynn, já mencionados por aqui.
E assim, partimos no dia 09 de abril para Lisboa. Chegando na manhã seguinte, fomos diretamente ao Serviço de Logística da UPS, no Prior Velho, para despachar a mala que ficaria guardada no hotel que nos hospedaria em Chipping Campden por 40 dias. Na UPS fomos informados que nossa encomenda chegaria ao destino 7 dias depois, ou seja, em 17 de abril. Avisamos o hotel e, depois de descansar um dia em Lisboa, seguimos bem cedo para o aeroporto pra pegar o avião para Lyon, na França.
O voo sairia as 9h30, se não fosse o nevoeiro que acabou atrasando todos os voos em quatro longas horas. De Lyon teríamos que pegar um trem para a Estação Ferroviária Central e depois um trem para Arles. Como já fizemos este trajeto quando fomos caminhar no Le Puy, ficamos tranquilos, sabendo que tudo daria certo, mesmo com todo aquele atraso. Mas, não foi bem assim. A linha que nos levaria até a Estação Central de Lyon estava passando por manutenções e era preciso descer em um certo local e pegar um ônibus, o que fizemos.
Chegamos na Estação Ferroviária as 18h30. No entanto, o último trem para Arles tinha partido às 18 horas. A única alternativa seria esperar até as 20 horas e pegar o trem para Marseille e, de lá, voltar para Arles num outro trem, pagando uma passagem quatro vezes mais cara para todo esse percurso. Fomos aconselhados a ficar em Lyon e partir logo cedo no dia seguinte, mas tínhamos uma estadia reservada em Arles e nenhum lugar para ficar em Lyon.
A confusão não parou por aí. O trem para Marseille atrasou. No meio do caminho atrasou mais ainda por causa de uma interrupção na linha. E, pelo visto, perderíamos o último trem para Arles, o que teríamos que comprar outra passagem e achar um lugar para dormir em Marseille. Bateu desespero. Já estávamos exaustos naquela altura dos acontecimentos. Como se fosse adiantar alguma coisa, bem antes de chegar ao destino, ficamos em pé em frente a porta de saída do trem. Perguntamos a uma senhora, que também estava em lá, se ela tinha algum aplicativo que marcava a plataforma do outro trem, considerando que a Estação de Marseille é grande. Apesar de não saber, abordou um outro rapaz que, felizmente, tinha o aplicativo. O rapaz disse que o outro trem estava com atraso de 5 minutos. E passou o número da plataforma. A informação não nos tranquilizou porque o nosso trem ainda estava com 15 minutos de atraso.
Depois de toda esta aflição, chegamos a Marseille e, praticamente, pulamos de um trem a outro sem saber se aquele era o trem para Arles, já que era o único aquela hora da noite na plataforma indicada. Enfim, pegamos o trem correto e chegamos em Arles à meia noite. Cansados, tivemos que caminhar até nossa hospedagem. Nossa apreensão de caminhar naquele horário foi embora quando percebemos que Arles era uma cidade animada, com bares e restaurantes abertos. Logo gostamos da cidade e fomos nos distraindo caminho afora.
Enfim, chegamos ao endereço correto. Com a chave em mãos fomos abrir a porta, que não queria abrir de jeito algum. O Helinho foi até uma outra porta e enquanto estava tentando abrir o morador chegou e estranhou um desconhecido tentando entrar na casa dele. Mas, a confusão foi desfeita quando o homem percebeu que só éramos dois brasileiros que não sabíamos que as maçanetas antigas na França tinham uma “pegadinha”. Era preciso girar a maçaneta para cima, girar a chave e girar a maçaneta para baixo para que a porta abrisse.
Entramos e vimos que o apartamento era tal e qual a foto. Tinha dois grandes sofás-camas, mas quem disse que aquela altura a gente conseguia abrir os sofás. Desistimos, e cada um de nós dormiu do jeito que foi possível. Somente pela manhã percebemos como era fácil abrir o sofá e ter uma cama super confortável.
E assim foi a nossa chegada na França, vários atropelos, estresse, mas que valeu a pena, quando no dia seguinte fomos conhecer a cidade, antes de partir para a nossa caminhada.
Entrando no caminho …
Logo cedo buscamos as nossas “credenciais”, que são aqueles “passaportes” nos dá aval para as nossas hospedagens. Era Domingo de Ramos e chovia muito. Visitamos o Le Cloître St.Trophine, Les Alyscamps, de onde partiam os caminhantes em suas peregrinações rumo a Santiago de Compostela. Ainda debaixo de chuva caminhamos pela cidade que nos deixou uma boa impressão. No dia seguinte partimos para St.Gilles.
Fugindo a regra, decidimos não sair cedo porque tínhamos que ir aos Correios, que só abririam às9h30. Não queríamos caminhar com um quilo extra do Duffle Bag que usamos para despachar as mochilas. Combinamos com nosso amigo Gê e o despachamos para o Porto. Depois disso, partimos, seguindo as instruções da Madame Annie, que foi a senhora que nos entregou as credenciais no dia anterior. Entre idas e vindas, erros e acertos, encontramos a saída. Caminhamos ora debaixo de uma chuvinha fina, ora com o tempo bem nublado e muito frio por um caminho bem sem graça. Chegamos a St.Gilles um pouco cansados, por ser o primeiro dia, pelas idas e vindas da saída de Arles e pela falta de graça do caminho.
St. Gilles é uma cidade bem bonitinha e muito bem cuidada. A Abadia é linda e a Cripta impressiona. A responsável pelo Gîte, Françoise, foi muito simpática e acolhedora. Só explicando melhor, existem tipos diferentes de hospedagem. O Gîte Comunal, possui quartos compartilhados, às vezes com um outro caminhante ou com dois, três etc. O Gîte d’Etape possui, além dos quartos compartilhados, quartos privados. E o Chambre d’hôte é o que conhecemos como Bed and Breakfast. Feito esta explicação, o nosso Gîte em St. Gilles era o Comunal, onde dividimos o quarto com a Nicole, que é da Bélgica e falaremos nela mais adiante, Martina e o seu neto (franceses), que nos impressionou por dormirem das 7 horas da noite até as 7 da manhã. Enfim, foi uma estadia tranquila e restauradora.
Às oito da manhã saímos de novo debaixo de chuva, vento e frio e assim permaneceu durante toda a caminhada. O percurso foi entre plantações e um canal de irrigação, construído na década de 50, até chegarmos a Vauvert. Ficamos num Chambre d’hote, de um filho de portugueses, e foi reconfortante depois de tanto frio que passamos no caminho. Como sempre, saímos pra conhecer a cidade, o centro histórico, fizemos compras, encontramos a Martina e o neto. Depois fomos descansar para mais um novo dia de caminhada até Villetelle.
Este início de caminho foi cheio de encontros. Primeiro reencontramos a Martina e o neto, depois encontramos a Claudine, uma francesa que estava acampando. Seguimos juntos até Codognan. Paramos para um café e ela continuou. Encontramos a Nicole e assim fomos nos reencontrando até Villetelle. A chegada foi bem engraçada. Enquanto conversávamos com a Claudine, que parou numa “Pâtisserie”, um senhor falando em espanhol nos abordou. Não entendemos nada quando ele quase nos puxou pelas mãos para acompanhá-lo. Dissemos que já tínhamos lugar pra ficar. Só depois vimos que o lugar que reservamos era a casa dele mesmo. Chegando, conhecemos a sua esposa e a surpresa maior ficou pelo lugar. Era tudo que precisávamos, limpo, quentinho, uma cozinha super bem equipada, bastante espaço. Ótimo! O casal era formidável.
E assim, continuamos nossa caminhada até chegar em Montpellier, considerada a sétima maior cidade francesa, com muitos estudantes por causa das muitas universidades e instituições de ensino superior. Por isso, merecia um dia a mais para conhecer melhor.
Ficamos próximo à Place de la Comedie, que é super movimentada e, de lá, tivemos fácil acesso aos pontos interessantes para visitação, como a Catedral de St. Pierre, a igreja de St Roch, a Place Royale du Peyru, l’Écusson, que é o bairro situado no coração da cidade. Conhecemos também o jardim que dizem ser o mais antigo da França, Jardin des Plantes. Fora isso, caminhamos pelo bairro Antigone e o Centro Comercial Polygone. Montpellier é, de fato, uma cidade muito interessante e, apesar de grande, é de fácil acesso.
Embora tenhamos gostado muito de Montpellier era hora de seguir em frente. O frio e a chuva tinham dado uma trégua em Montpellier e no caminho para Montarnaud. Nesta cidade, ficamos num minúsculo Airbnb, mas fizemos amizade com a Carine, uma psicanalista jovem, mãe de dois filhos, muitíssimo prestativa e interessante. Ela avisou que o tempo mudaria no dia seguinte. E, foi o que aconteceu. Caiu uma tempestade e o frio congelante foi o nosso companheiro neste dia.
Chegamos em St. Guilhem-le-Désert, uma cidade medieval com poucos habitantes e muitos turistas, mas, que com tanta chuva, ficou tranquila e deserta. Por um lado, foi bom para conhecer melhor. O astral do lugarejo era bem enigmático, o que aguçou ainda mais a nossa imaginação. O vilarejo foi eleito um dos mais bonitos da França, num cenário bem típico da Provence. A arquitetura românica e a vegetação eram fantásticas.
A noite uma tempestade de granizo assustou e ficamos pensando como seria a caminhada do dia seguinte, já que eram mais de 24 km de uma trilha desafiante até St. Jean La Blaquiere. Depois nosso próximo destino seria Lodéve, tudo isso num visual cênico.
Logo de saída de St. Guilhem, seguindo o riacho, os altos penhascos dos lados já indicavam a dificuldade que vinha pela frente, embora seja uma trilha bem-sinalizada, serpenteando as paredes de rocha.
Já em Lodève reencontramos a Nicole, a belga que conhecemos no primeiro dia de caminhada. Levamos um susto quando vimos que ela tinha sofrido um acidente na trilha. Nicole caiu com o rosto numa pedra. Foi socorrida e cortou a testa, que precisou de pontos. O olho estava bem roxo, por causa da pancada, e tinha dificuldade para caminhar com uma tendinite no pé, provavelmente provocada pela queda. Nicole estava bem, mas decepcionada sem saber se conseguiria continuar.
O nosso próximo destino seria Lunas e depois St.Gervais-sur-Mare. Enquanto estávamos fazendo uma reserva no nosso próximo destino, nosso aplicativo do banco teve o acesso bloqueado por um erro do próprio banco. Tentamos desbloquear de várias maneiras, mas foi impossível, o que nos causou grandes transtornos durante toda a viagem, até retornarmos para Portugal. Bem, dizendo isso, gostaríamos apenas reforçar a ideia de quem tem amigo tem tudo, ainda que seja uma nova amiga. Diante da dificuldade, a nossa nova amiga Nicole ofereceu nos ajudar com uma quantia em dinheiro, quando viu o nosso perrengue com o banco. Claro que não aceitamos, mesmo porque não era necessário. Tínhamos alternativas para o problema. Mas, a atitude da Nicole nos tocou bastante. Uma pessoa que mal nos conhecia e nem sabia se nos encontraria pela frente, nos oferecer dinheiro para as nossas necessidades deixou-nos bem felizes por saber que ainda existem pessoas boas que querem o bem-estar de outras. Em contrapartida, oferecemos a nossa companhia para a caminhada dos próximos dias, para que a Nicole se sentisse mais segura ao caminhar na trilha. Entretanto, ela decidiu não continuar e terminou ali o sonho do caminho, voltando para casa.
De St.Gervais-sur-mare para Vèbre a caminhada foi demorada porque tinha muita subida. Em compensação, foi uma caminhada inesquecível. Mágica! Atravessamos a maior parte do caminho por uma floresta que nos pareceu encantada. O tempo todo tivemos a sensação de estarmos sendo observados e acompanhados. Então, inesperadamente, do meio do nada, surgiram dois cabritinhos, um branco e um preto, os dois do mesmo tamanho e muito rápido. Assim como apareceram, sumiram no meio da mata. Não é a primeira vez que temos esta sensação de que algo nos observa e acompanha, mas… acredite quem quiser…
Chegando a Vèbre, um mal-entendido nos levou para um gîte errado e, com isso, tínhamos mais 2 km para caminhar, o que naquele momento foi desesperador devido ao cansaço. O rapaz, dono da pousada, vendo no nosso semblante a decepção, resolveu nos dar uma carona até o lugar correto. Chegando, fomos recompensados com o lugar, com a recepção muito amigável da proprietária da fazenda e com o queijo tipo roquefort que ganhamos. Este, produzido ali mesmo. Como dizem os mineiros “era bom com força”.
Continuamos nosso caminho debaixo de neblina e chuva, que não parou mais até chegarmos em Castres, uma cidade maior e com mais infraestrutura. Como era um sábado decidimos ficar na cidade o domingo também para descansar, esperar a chuva e o frio melhorarem um pouco. No final da tarde de domingo o sol saiu e o dia seguinte prometia ser melhor.
Na noite do domingo, recebemos um e-mail, no mínimo inusitado, o que nos deixou preocupados. A proprietária da fazenda em Dourgne, que era a nossa parada do dia seguinte, dizia que nós não tínhamos aparecido por lá e que no dia seguinte não adiantaria aparecer porque não teria lugar pra nós. O e-mail dizia muito mais e era muito grosseiro. Ficamos sem entender. Conferimos nossa reserva para ver se tínhamos cometido algum erro de datas e estava tudo certo. Nossa reserva era para segunda feira. O problema era que no local só existiam duas opções de hospedagem, a fazenda ou o mosteiro que estava cheio. Ligamos, ainda sem entender, e a proprietária da fazenda foi grosseira conosco. Depois ela ficou convencida de que o erro era dela e não nosso. O e-mail da reserva estava correto e ela tinha marcado na agenda erroneamente. Ficamos aliviados, mas não gostamos do rumo que aquilo tinha tomado. Além disso, foi estipulado um horário para chegarmos. Isso porque, fora desse horário ela não estaria lá para nos atender. Chegamos um pouco antes do combinado e não encontramos ninguém. Fomos olhar as instalações e foi decepcionante. Depois que ela chegou, muito sem graça com toda a confusão e quase não se desculpou, fomos para o nosso roulotte, que é uma daquelas carroças antigas, que vemos nos filmes americanos de bang-bang. Seria uma excelente experiência se não fossem as formigas que dormiram conosco, já que o roulotte estava fechado há algum tempo. Mais tarde chegou mais uma hóspede, a Corine, que foi para o dormitório. Fomos conhecer o local que ela ficaria. A ideia era trocarmos de lugar para dormir, mas, sinceramente, não tivemos coragem. Era muito ruim. A Corine disse que acordou no meio da noite gelada e morrendo de medo de ter ratos. Pelo visto, ficamos mais bem acomodados na carroça com as formigas, que não nos incomodaram, e era mais quentinho. Depois rimos muito da situação, junto com a Corine e um amigo alemão que, afortunadamente, tinha ficado no mosteiro que era espetacular. Só para terminar a saga, o jantar que pagamos e achamos que seria bom, foi horrível. Nada mais era do que um prato pronto, daqueles comprado no supermercado. Péssimo!
Partimos bem cedinho para Ravel. Só encontramos água para beber a 5 km do nosso destino. Como era uma cidade maior nos abastecemos com comida, frutas e água. Neste dia, jantamos e dormimos bem e, mais uma vez, rimos muito da situação passada na fazenda ao reencontrar a Corine e o seu amigo alemão.
No dia seguinte, revigorados seguimos para Le Cassés, que é uma vila pequena sem infraestrutura. Desta vez, estávamos preparados. Tínhamos água e comida suficientes. Caminhamos a maior parte do trajeto ao lado do rio, num cenário bem bonito e confortável, se não fosse o vento forte que começou de repente. O céu estava muito azul, mas o vento era muito forte. Depois vimos que a previsão para aqueles dias era de vento que atingiriam até 85 km/hora. Enfim, chegamos em Le Cassés e fomos bem recebidos pela Isabelle, uma anfitriã super simpática e prestativa. No jantar nos juntamos a ela e outras duas francesas, que começavam o caminho naquele mesmo dia. Foi uma noite bem agradável.
O dia seguinte foi uma caminhada bem mais longa, mas igualmente agradável, apesar do vento que cumpriu a previsão do tempo e atingiu os previstos 85 km/hora. Quando estava a nosso favor era bom, mas quando nos pegava de lado ou de frente era péssimo. Resolvemos seguir o caminho pelo Canal du Midi, que era mais plano e mais confortável. O único problema era que, muito arborizado, tinha risco de queda de árvores, como de fato aconteceu. Um trecho foi fechado e tivemos que fazer uma volta bem grande pela estrada. Foi preciso muita cautela e atenção durante todo o esse percurso.
Desta vez, lembramos das nossas andanças pela Sicília. Lá, depois de cumprir um longo caminho, as cidades e vilas ficavam sempre no alto. Em Avignonette-Lauragais, nosso próximo destino, foi assim. Para chegar no gîte a subida foi estafante, mas foi recompensada pela recepção, pelo jantar e pelas histórias que ouvimos da Daniella, nossa anfitriã. Uma vez mais encontramos a Corine, que desta vez estava um pouco mais quieta, talvez pelo cansaço, por conta de um erro que a fez caminhar além do esperado. Ali nos despedimos, porque a nossa intenção era ficar dois dias em Toulouse, enquanto ela seguiria direto para Léguevin.
Bem cedo seguimos em direção a Toulouse, que um dia se chamou “Tolosa”, daí o nome da “Via Tolosana”. A decisão de permanecer dois dias por lá foi devido ao tamanho da cidade. Gostaríamos de conhecer os pontos mais importantes e em um dia apenas não seria possível.
A capital da região da Occitania ganhou o apelido de “Ville Rose”, por causa da sua arquitetura, onde prevalecem os tijolos de terracota. Como curiosidade, a empresa aeroespacial Airbus está sediada em Toulouse, assim como a Basílica de St. Sernin e o Canal du Midi, ambos Patrimônios Mundiais da UNESCO. A Basílica de St. Sernin é o maior edifício românico da Europa e importante rota de peregrinação para Santiago de Compostela. Por isso, muitas pessoas começam as suas caminhadas até Santiago, em Toulouse. Além desses dois pontos de interesse, visitamos o Capitolio, Convent des Jacobins, Chapelle St.Joseph-la-Grave, Eglise Notre Dame-de-la-Dalbade, St. Cyprien, Pont St.Pierre, Pont Neuf e fizemos belas caminhadas seguindo o Rio Garone.
Ficamos sabendo que uma grande tempestade chegaria no dia seguinte. A recomendação era ter muita cautela e ficar em casa. A tempestade chegou e, por isso, foi necessário esticar mais um dia em Toulouse, o que comprometeria o nosso roteiro. Então, foi necessário queimar uma etapa. Pegamos um trem até o próximo destino e chegamos a Auch dentro do tempo previsto, colocando em dia a nossa previsão de datas.
Já estávamos a pouco menos de 200 km de Somport, nos Pirineus. Achamos Auch uma cidade bem interessante. Não tivemos tempo para explorá-la porque chegamos no final da tarde. Ficou uma frustraçãozinha, mas era preciso seguir.
Saímos sem pressa, passamos na prefeitura da cidade, para pegar o carimbo nas credenciais, e seguimos subindo e descendo por estradinhas rurais. Num certo ponto, nos embrenhamos floresta adentro e a partir daí foi só barro. Brincamos que o nome Barran, a vila que era nosso destino, já era um prenúncio do que encontraríamos pelo caminho. Mas, a vila era muito bonitinha, muito bem cuidada e bem florida.
Marcamos de ficar num gîte comunal, que era o único lugar da vila, além de um hotel que ficava fora da cidade e era bem caro. Entretanto, quando chegamos no gîte o prédio estava muito deteriorado. Decepcionados, fomos ver o quarto onde dormiríamos. Para nossa surpresa era amplo, bem ventilado, estava limpo e tinha quatro camas. Não era tão mal assim… nos ajeitamos por ali e saímos para comprar alguma coisa para comer. Na volta, reencontramos uma francesa, que conversamos muito rapidamente no caminho. Ela tinha dito que ficaria em algum lugar que não entendemos onde exatamente. Achamos estranho porque não tinha outro lugar na região a não ser o gîte comunal e o hotel. No momento deste encontro ela segurava as botas nas mãos, estava de chinelos e a mochila arrumada de qualquer jeito. Achamos estranho. Ela perguntou se tinha cama sobrando onde estávamos. Mostramos pra ela o quarto e ela disse que queria ficar conosco. Foi então que contou que estava naquele hotel caro, mas que tinha abandonado o lugar porque viu um enorme rato morto debaixo da cama. Acho que nós também teríamos feito o mesmo.
Nós sabíamos que chegaria mais uma pessoa para dormir no nosso gîte e que a outra cama estaria vaga. E, de fato, foi o que aconteceu. Por isso, não entendemos, até hoje, porque os gestores do gîte disseram a ela que todas as camas estavam ocupadas. Ficamos pensando o que ela teria dito ou feito no hotel para resultar nesta recusa de hospedagem. Afinal, era uma vila e todos se conheciam. Ficamos preocupados com a francesa, mas depois soubemos que ela dormiu muito bem na casa de um morador.
Voltamos ao nosso quarto, jantamos e pelas 7 da noite chegou o outro hóspede. A princípio, achamos o homem um pouco destrambelhado. Depois de muita conversa vimos que era uma pessoa muito interessante e divertida, com uma mochila imensa, superpesada e cheia de comida. Jean Claude é de Montpellier e estava começando a caminhar naquele dia. Estava indo para Barcelona encontrar uma amiga. Nos divertimos muito com ele nesta noite, e nos outros dias que o encontramos. Até hoje ainda trocamos mensagens divertidas via WhatsApp. E assim, o homem que era estranho virou nosso amigo, o que não é muito estranho.
Na saída do gîte em Barran um contratempo. Assim que fechamos a porta e deixamos as chaves na caixa dos Correios, como combinado com o gestor do lugar, vimos que os bastões do Helinho tinham ficado no quarto. Foi preciso chamar alguém para abrir a porta.
O caminho até Montesquieu não era longo, por isso não estávamos preocupados com horários. Mesmo porque, muitas vezes quando chegamos cedo ao nosso destino ficamos esperando o horário da abertura da hospedagem.
Voltando no tempo, em Toulouse, pedimos para a nossa anfitriã fazer uma reserva em Montesquieu, que também tinha poucas opções de hospedagem. O contato foi direto com a proprietária do local. Foi feito um verdadeiro interrogatório. Ela queria saber como conseguimos o número do telefone, o que respondemos que constava do Miam Miam Do Do, que é um guia francês dedicado a quem caminha. Depois de todas as perguntas respondidas a nossa já amiga proprietária da hospedagem de Toulouse ainda precisou dar o aval sobre a nossa idoneidade. Disse que nós éramos um casal de brasileiros muito legais e com muita experiência de caminhadas. Enfim, a reserva foi feita e o combinado foi chegar na cidadezinha, ligar para a senhora, que omitiu o seu nome e o endereço da casa, e aguardar por ela em frente a igreja.
No meio do caminho reencontramos a francesa que fugiu do rato do hotel. Perguntamos onde ela ficaria em Montesquieu e chegamos a conclusão de que, pelas orientações recebidas, ficaríamos no mesmo lugar. Combinamos de encontrar em frente a igreja e faríamos uma só ligação. Como chegamos antes, sentamo-nos no lugar combinado, quando apareceram duas mulheres, a Brigitte e a Isabella. Contamos a elas que estávamos ali esperando uma caminhante para fazer uma ligação telefônica para o local onde ficaríamos hospedados, mas que não nos foi fornecido o nome da proprietária do tal gîte. A Isabella disse que não nos preocupássemos porque, se alguma coisa desse errado, nós ficaríamos na casa dela. Depois disso, nos ofereceu um café. Ficamos preocupados da francesa caminhante chegar e não nos encontrar. Por isso, diante da insistência da Isabella, entramos em sua casa, mas sempre de olho na porta da igreja. O marido, que falava inglês, apareceu e ficou conversando conosco, enquanto Isabelle preparou um belo lanche com morangos, chantilly, queijos e café.
Enfim… fomos super bem recebidos e ficamos agradecidos. Diante da nossa explicação, o marido da Isabella pediu o número do telefone e ligou. Foi quando soubemos que a hospedagem era exatamente em frente a casa deles. Era um vizinho próximo e, até hoje, não entendemos por que omite o nome e o endereço do gîte, já que consta de um guia.
Tudo resolvido, entramos no nosso alojamento e a francesa caminhante já estava lá há algum tempo. Não sabemos bem, mas talvez ela até tenha chegado no local combinado antes de nós. Achamos estranho, mas deixamos pra lá. Fomos conhecer a pequena vila, que é super legal e também florida.
Naquele dia, o jantar foi delicioso. O casal de proprietários era muito divertido e serviu um vinho e queijos maravilhosos. O café da manhã não foi pior do que o jantar. Tudo isso não teve um preço estipulado. Pagamos o que achamos justo. E seguimos em direção a Pau (a pronúncia é, mais ou menos, “Pô”).
Na verdade, o próximo destino foi Marciac, onde encontramos quatro primas que disseram que todos os anos caminhavam juntas por uma semana. Ficamos num albergue e o jantar comunitário foi ao estilo tunisiano, com direito aos doces e tâmaras maravilhosas de sobremesa.
Ao sair no dia seguinte, fomos abordados por um senhor que disse que deveríamos ir por outro caminho, economizando mais de 7 km. Ficamos em dúvida qual caminho seguir até que as primas apareceram. Ficamos ali discutindo sobre por onde seguir e chegamos a conclusão que o caminho mais curto seria muito sem graça, porque passaria por uma rodovia. E seguimos, ora nos encontrando ora nos dispersando até chegarmos a Maubourget, uma cidade maior.
Ficamos numa hospedagem de um casal de alemães e a filha Brianna e o Denz, um menino de 7 anos super educado. E assim seguimos caminhando até Pau, de onde nos desviaríamos para Lourdes, nossa meta na programação desta caminhada.
Até este momento do relato omitimos uma questão muito chata que, de certa forma, tirou um pouco o nosso foco do caminho. A mala que despachamos pela UPS em Lisboa para a cidade de Chipping Campden (Inglaterra), com roupas formais para o casamento de amigos, que comentamos no início deste relato, ainda não tinha chegado ao destino depois de mais de 30 dias, quando a previsão seria chegar em 7 dias.
Tudo começou, muitos dias atrás, quando recebemos um e-mail da UPS Reino Unido pedindo uma documentação, que já tinha sido despachada junto com a encomenda, pela própria UPS Portugal. Quando pedimos uma cópia do documento para UPS Portugal, para reenviar para o Reino Unido, fomos informados que não havia nenhuma cópia, mas que mandariam um formulário em branco para preenchermos. A partir daí foi um caos. Foi um desencontro de informações, tanto do tracking quanto na UPS do Reino Unido e da própria UPS de Portugal. O nosso amigo Frank, pai da noiva, tentou nos ajudar ligando para a UPS do Reino Unido e o Gê, outro amigo em Portugal, indo até a UPS no Porto para saber o que estava acontecendo. Todas as informações eram totalmente sem sentido. Até que um dia chegou uma conta de 78 Pound (aproximadamente 90 euros) para pagarmos, o que fizemos para ter a bagagem entregue no destino. Resumindo, mesmo assim, a bagagem não foi entregue e perdemos o casamento. Mas, o restante contaremos na sequência porque foram muitas emoções.
Durante toda a caminhada, tentamos não nos deixar abater por esses problemas e, no dia 11 de maio, chegamos em Lourdes, debaixo de muita chuva. Nos emocionamos! Era um domingo, Dia das Mães no Brasil e a Basílica estava lotada de fiéis para assistir uma missa, que foi muito bonita. Visitamos a gruta da aparição de Lourdes e caminhamos pela cidade. Saímos de lá com a sensação de dever cumprido e um pouco mais reconfortados com todo aquele problema da bagagem que “não estava perdida”, apenas não foi entregue. Isso porque, sabíamos que estava parada no hub da UPS, próximo a Londres, desde que chegou no dia 06 de abril. Tínhamos uma Air Tag na mala e acompanhávamos toda a trajetória dessa encomenda.
Já estávamos no Pre-Pyrenees e faltavam poucos dias para cruzar os Pirineus por Somport, descendo para Jaca, na Espanha, onde encerraríamos mais esta caminhada. Foi em Oloron, no albergue que ficamos, que reencontramos o Jean Claude. Também conhecemos um caminhoneiro e duas amigas que seguiriam um caminho diferente do nosso. Neste tempo, ficamos sabendo que um dos trechos que passaríamos na subida para Somport estava interditado, por causa das fortes chuvas do final de 2024. Seria necessário pegar um ônibus para ultrapassar aquele trecho.
Assim, depois de passar Oloron-Saint-Marie, Sarrance, Bedous, Accous, Urdos, finalmente cruzamos da França para a Espanha através do Col du Somport. O frio congelante e a neblina foram testemunhas de que chegamos no topo dos Pirineus, onde planejamos chegar. Dali descemos para Candanchú e Canfranc-Estación.
Como o próprio nome diz a Estação de Canfranc foi um projeto de ligação da Espanha à França, isto é, de Jaca a Canfranc, por ferrovia, e um túnel que passa por Somport, concluído em 1914. Hoje a Estação é um hotel 5 estrelas, Royal Hideaway, que combina a história, o design e a gastronomia. O restaurante, com uma estrela Michelin, funciona em dois vagões restaurados compondo o clima do lugar.
Para finalizar mais esta etapa, chegamos a Jaca. Jaca é uma cidade super agradável. Como muitas das cidades da Espanha, o maior horário de movimento é depois da siesta, onde as pessoas vão para as ruas, para os bares e as crianças brincam, resultando num intenso vai e vem de pessoas. Além disso, foi imprescindível visitar a grandiosa Cidadela, em formato pentagonal, declarada Monumento Histórico-Artístico. Outros pontos turísticos interessantes da cidade são a Catedral, o Mosteiro dos Beneditinos, a Igreja de Santiago, a Ermida de Sarsa, a Ponte de San Miguel, a torre do Relógio e a Prefeitura. Depois de explorar a cidade, em apenas um dia, era hora de partir. Nossos próximos destinos seriam Zaragoza e Santiago de Compostela, mas não sem antes despedirmos do Jean Claude que, afortunadamente, encontramos na Rodoviária de Jaca, pelo menos para dizer um “au revoir”, “adiós” ou, quem sabe, “até breve”.
A viagem para Zaragoza foi de apenas 2 horas. Zaragoza é uma cidade enorme e, obviamente, não a conhecemos como merecia. As principais joias preciosas da cidade são a Basílica de Nossa Senhora do Pilar, que pode ser avistada de longe, e a Catedral del Salvador com sua arte mudéjar aragonesa. Mas, era hora de partir, numa viagem que duraria longas 11 horas até Santiago de Compostela.
A decisão de ir a Santiago de Compostela teve duas razões. A primeira, porque queríamos agradecer a Santiago pela inspiração de viajar a pé, já que foi lá que esta paixão se despertou. Segundo, porque era de lá que pegaríamos o voo pra Londres, e encontraríamos os nossos amigos na cerimônia do casamento de Olivia e Alex, o que contaremos a seguir.
Mais um “round” para recuperar a bagagem e o final desta saga …
Na véspera do embarque para Londres, em Santiago de Compostela, já sabíamos que seria impossível ir ao casamento em Chipping Campden. Nossa bagagem não tinha chegado ao destino. Mas, como a “esperança é a última que morre”, pesquisamos na internet se no Aeroporto de Stansted, onde desembarcaríamos, teria uma UPS que pudéssemos conversar pessoalmente. A surpresa foi ler inúmeras reclamações da empresa. Foi quando decidimos também fazer a nossa reclamação e que, para nossa surpresa, fomos respondidos via Messenger. Um funcionário nos encaminhou a outro, que se interessou pelo nosso problema.
Apesar da nossa esperança, embarcamos nos dias 20 de maio para Londres, agora já com a certeza de que não seria possível ir ao casamento no dia seguinte. Estávamos muito desapontados, mas teríamos outra batalha pela frente: recuperar a nossa bagagem. Foram dezenas de mensagens trocadas via Messenger com o funcionário da UPS Londres, mas a situação só começou a se resolver quando ameaçamos “judicializar “o problema.
Cancelamos a entrega em Chipping Campden e pedimos para retirar a bagagem, no hub próximo a Londres, onde estava parada a quase 40 dias. Disseram que lá era só um depósito, mas que poderíamos reaver a bagagem numa cidade a quase 200 km de distância, em Gloucester. Perguntamos por que a UPS poderia entregar em Gloucester e não porque não entregaram em Chipping Campden? A resposta ficou no ar…
Nessa altura dos acontecimentos as emoções estavam a flor da pele. Primeiro, porque perdemos o casamento. Em segundo lugar, tivemos que arrumar lugar pra nos hospedar em Londres, de última hora, e o prejuízo se contabilizava em nossa conta. Afinal, a ida para Inglaterra tinha um único motivo, o casamento. E por último, porque parecia que a UPS queria mesmo nos fazer de idiotas. Foi quando demos a última cartada da judicialização e um endereço provisório em Londres. Assim, finalmente, enviaram a mala para o Customer Center da UPS em Londres, onde recolhemos a nossa mala.
Aliviados, nos dias seguinte, ainda com um nó na garganta, por causa de toda a confusão, resolvemos aproveitar a cidade. Turistamos por Londres, revisitamos lugares, comemoramos mais um aniversário da Vera e depois partimos para Portugal.
Ainda tínhamos mais uns dias para aproveitar. Primeiro, fomos para o Porto, encontrar o Geraldo, ou Gê, para os amigos. Relaxamos três agradáveis dias. Depois partimos para Lisboa.
Chegando lá, fomos a UPS para fazer uma reclamação formal. Quando conversamos com o funcionário já percebemos que aquilo não daria em nada e pensamos, isso não vai dar em nada…
Resolvemos deixar esta história para lá e fomos aproveitar o que Lisboa tem de melhor. Nessa época, a cidade estava uma festa. Aproveitamos a semana que antecede a comemoração dos Santos Populares. Encontramos os amigos Rui, Marquinho e Gabriela, Adriana, Sofia e José. Flanamos pela cidade, nos divertimos e voltamos para nossa casa com a frustração da mala, que nunca foi entregue no destino, mas com as mochilas cheias de histórias legais pra contar.
Mas…. chegando em casa, juntamos toda a documentação, fizemos um dossiê de todo o processo do envio da bagagem de Lisboa para Chipping Campden e enviamos num e-mail para a UPS Reino Unido, UPS Portugal e UPS Estados Unidos, por ser a matriz da companhia. Recebemos de volta uma mensagem dizendo que seria feita uma investigação. O resultado veio alguns dias depois. Se desculparam pelo “inconveniente” causado, e ressaltaram que de acordo com os termos da empresa, a UPS não se responsabiliza por “lucros cessantes e danos indiretos ou consequentes” como “perdas puramente econômicas, perda de oportunidades de negócios, perda de vendas ou perda de lucros ou resultados”. Daí nos perguntamos, que empresa é essa? Realmente, nos fizeram de idiotas!
Apesar dessa resposta aos nossos questionamentos, resolvemos esquecer esses problemas e seguimos em frente, planejando novas viagens, novas aventuras e novos desafios, desde que não envolvam “malas” …. Viajamos muito bem somente com as nossas mochilas!